Introdução:
Franklin Delano Roosevelt (1882–1945), Presidente dos Estados Unidos durante doze anos críticos (1933–1945), não apenas transformou a política interna com seu New Deal, como também redefiniu o papel dos Estados Unidos no cenário global. Sua diplomacia, marcada por um pragmatismo flexível, uma visão idealista da cooperação internacional e uma habilidade única para navegar entre o isolacionismo e o intervencionismo, lançou as bases da ordem liberal do pós-guerra. Este artigo explora como FDR combinou realpolitik, inovação institucional e liderança pessoal para enfrentar a Grande Depressão, a Segunda Guerra Mundial e os primeiros lampejos da Guerra Fria, deixando um legado que ainda estrutura as relações internacionais.
Quando Franklin Delano Roosevelt assumiu a presidência em 1933, os Estados Unidos eram um gigante ferido. A Grande Depressão havia quebrado não apenas sua economia, mas também sua fé no futuro. O país, ensimesmado em sua dor, olhava com desdém para um mundo que se deslizava rumo ao abismo. Mas FDR, com seu sorriso imperturbável e sua bengala como testemunha silenciosa de sua luta contra a poliomielite, não era um homem de olhares para dentro. Sua visão, ampla como o oceano que o cercava, entendeu antes de todos que o destino dos Estados Unidos estava ligado ao do planeta. Em doze anos, transformou uma nação fraturada no arquiteto de uma nova ordem mundial, tecida com fios de pragmatismo, idealismo e uma audácia que só a história julgaria.
O Contexto: isolacionismo, depressão e o surgimento de uma nova ordem.
Quando Roosevelt assumiu em 1933, os Estados Unidos estavam imersos no isolacionismo. O trauma da Primeira Guerra Mundial, o fracasso da Liga das Nações e o protecionismo da Tarifa Smoot-Hawley (1930) haviam afastado o país dos assuntos globais. FDR herdou uma nação que desconfiava da Europa e priorizava a recuperação econômica. Seu desafio era duplo: revitalizar a economia e reposicionar os EUA como árbitro global sem provocar rejeição interna.
A Diplomacia do New Deal: economia como ferramenta global.
O New Deal foi mais do que um plano de resgate econômico: foi a primeira pedra de uma diplomacia que unia o doméstico ao global. Enquanto distribuía sopa em refeitórios públicos, Roosevelt já negociava em salões distantes. Na Conferência Econômica de Londres (1933), surpreendeu o mundo ao rejeitar acordos que atassem suas mãos para desvalorizar o dólar. “Nossa prioridade é o povo americano”, declarou, mas por trás dessa frase havia uma estratégia: reconstruir os Estados Unidos como farol econômico, mesmo que isso significasse romper as regras do jogo internacional.
O New Deal não foi apenas um programa interno; teve ramificações internacionais que FDR explorou habilmente:
a) A Conferência Econômica de Londres (1933):
Em seu primeiro ano, Roosevelt enviou uma delegação a Londres para estabilizar moedas e comércio. Contudo, em uma reviravolta surpreendente, rejeitou acordos que limitassem sua capacidade de desvalorizar o dólar, priorizando a recuperação doméstica sobre a cooperação global. A mensagem foi clara: os EUA negociariam, mas não à custa de sua soberania econômica.
b) A Política da Boa Vizinhança (1933):
Roosevelt abandonou o intervencionismo na América Latina, retirando tropas do Haiti e da Nicarágua e anulando a Emenda Platt em Cuba (1934). Essa mudança, mais do que altruísta, buscava assegurar mercados para exportações americanas e conter influências fascistas e comunistas.
c) Acordos Comerciais Recíprocos (1934):
Sob o Reciprocal Trade Agreements Act, FDR negociou tratados bilaterais que reduziam tarifas, revitalizando o comércio sem necessidade de aprovação do Congresso. Essa estratégia, embora modesta, lançou as bases do multilateralismo econômico posterior.
Da Neutralidade à Beligerância: FDR e o Caminho para a Guerra:
No meio dos anos 30, enquanto a Europa se cobria de suásticas e bandeiras vermelhas, os Estados Unidos se agarravam ao mito da invulnerabilidade. As Leis de Neutralidade (1935–1939) proibiam a venda de armas a países em guerra, mas FDR, mestre do jogo legal, encontrou brechas. Quando a Espanha sangrava em sua guerra civil, permitiu que caminhões americanos, etiquetados como “ajuda humanitária”, chegassem aos republicanos. “Não estamos tomando partido”, dizia, enquanto tomava partido.
A verdadeira virada veio em 1941 com o Lend-Lease Act. “Imaginem que a casa de seu vizinho esteja pegando fogo”, argumentou perante o Congresso. “Você não venderia uma mangueira; você a emprestaria”. Assim, os Estados Unidos enviaram 50.000 tanques, 600.000 caminhões e 12.000 aviões à Grã-Bretanha, à URSS e à China. Não era neutralidade: era uma guerra econômica disfarçada de generosidade.
FDR gerenciou a crescente ameaça totalitária equilibrando o isolacionismo público e a preparação bélica:
a) As Leis de Neutralidade (1935–1939):
Embora tenha assinado essas leis (que proibiam a venda de armas a países em guerra), ele as enfraqueceu através de interpretações criativas. Por exemplo, durante a Guerra Civil Espanhola (1936–1939), permitiu o envio de ajuda aos republicanos sob o pretexto de “não intervenção”.
b) O Lend-Lease Act (1941):
Em um de seus maiores feitos legislativos, FDR convenceu o Congresso a aprovar empréstimos de material bélico a aliados, argumentando que era como “emprestar uma mangueira a um vizinho cuja casa está em chamas”. Esse programa, que enviou US$ 50 bilhões (atualizados) para a Grã-Bretanha, a URSS e a China, foi uma guerra econômica disfarçada de neutralidade.
c) A Carta do Atlântico (1941):
Em seu encontro secreto com Churchill em Terra Nova, FDR delineou princípios como a autodeterminação e a liberdade de comércio. Embora idealista, o documento serviu para unir os Aliados sob uma causa comum e pressionar a URSS a adiar ambições territoriais.
A Diplomacia de Guerra: Construindo a “Grande Aliança”:
FDR entendeu que vencer a guerra exigia uma coalizão improvável:
a) O enigma soviético:
Apesar de desconfiar de Stalin, FDR priorizou a aliança com a URSS:
- Ajuda maciça: enviou 400.000 caminhões e 11.000 aviões à URSS via os comboios do Ártico.
- Conferências-chave: em Teerã (1943) e Ialta (1945), cedeu na Europa Oriental em troca de compromissos soviéticos contra o Japão e na futura ONU.
b) Churchill: um parceiro incômodo:
Embora próximos pessoalmente, FDR e Churchill entraram em conflito em:
- Descolonização: FDR pressionou para desmantelar o Império Britânico, especialmente na Índia.
- Segundo Front: insistiu na abertura da frente ocidental (Dia D, 1944) para aliviar a pressão sobre a URSS, apesar das reticências britânicas, particularmente devido às visões — acertadas — de Winston Churchill.
c) A China de Chiang Kai-shek: um aliado simbólico:
FDR elevou a China a “quarto policial global” na Declaração de Moscou (1943), sabendo que estava enfraquecida, mas precisando de seu peso contra o colonialismo europeu na Ásia.
A Arte de Abraçar o Diabo: A Grande Aliança.
FDR sabia que para derrotar Hitler precisava de aliados incômodos. Com Churchill, sua relação foi de uísque compartilhado e choques velados. Em Terra Nova, durante a Carta do Atlântico (1941), falaram de liberdade e autodeterminação, mas FDR já planejava o fim do Império Britânico. “A Índia não pode continuar sendo uma colônia”, insistia, enquanto Churchill resmungava.
Com Stalin, a dança foi ainda mais perigosa. Em Teerã (1943) e Ialta (1945), FDR virou o rosto para as purgas soviéticas, concentrando-se em seu único objetivo: ganhar a guerra. “Stalin não é um idealista como nós”, confessou a um aliado. “Mas é o único que tem dez milhões de soldados dispostos a morrer.” Assim, enviou 400.000 caminhões para a URSS, salvando Moscou enquanto condenava Varsóvia.
Um Visionário Institucional: Seu Caminho para um Mundo Pós-Guerra:
A grande aposta de FDR foi criar instituições que evitassem outro conflito global:
a) As Nações Unidas:
Inspirado na falida Liga das Nações de Woodrow Wilson, FDR desenhou a Organização das Nações Unidas com:
- Um Conselho de Segurança: com poder de veto para as grandes potências, garantindo sua participação.
- Uma Assembleia Geral: composta por todos os países que aderissem à Organização, cumprindo requisitos determinados e onde todos poderiam ser ouvidos.
A Conferência de Bretton Woods (1944): que criou o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, institucionalizando o dólar como eixo da economia global.
Enquanto as cidades europeias ardia, FDR já imaginava o mundo pós-guerra. Em 1944, em Bretton Woods, reuniu 44 nações para criar o FMI e o Banco Mundial. “O dólar será a moeda do mundo”, anunciou, sem corar. Mas sua obra-prima foi a ONU: um fórum onde as potências vigiassem a paz, vetando conflitos desde um Conselho de Segurança. “Desta vez”, prometeu, “não repetiremos os erros de Wilson”.
b) Institucionalização do Plano Morgenthau (1944):
Proposto pelo seu secretário do Tesouro, Hans Morgenthau, o plano buscava desindustrializar a Alemanha, com uma base relativamente simples, para que a máquina de guerra que havia intervenido nas duas guerras mundiais do século XX não voltasse a se erguer como um perigo. FDR o apoiou inicialmente, mas depois o abandonou pelo enfoque reconstrutivo do Plano Marshall, mostrando seu pragmatismo e construindo um muro de prosperidade econômica contra a Maré Vermelha de Stalin. No entanto, seu pragmatismo teve sombras. O Plano Morgenthau, que propunha reduzir a Alemanha a um país agrícola, o tentara brevemente. Depois, optou pela reconstrução, semeando as sementes do Plano Marshall. “Punir os vencidos não traz paz”, concluiu. “Só semeia rancor”.
Sombras no Legado: Ética e Contradições:
A diplomacia de F.D. Roosevelt não esteve isenta de críticas:
- Internamento de nipo-americanos (1942): considerado uma medida racista que enfraqueceu sua imagem como defensor dos direitos humanos.
- Acusaram-no posteriormente de indiferença ao Holocausto: recusou-se a bombardear Auschwitz ou flexibilizar as cotas de refugiados, priorizando a vitória militar sobre o resgate.
- Acordos com ditadores: onde mostrou um pragmatismo absoluto, desde Rafael Leónidas Trujillo na República Dominicana até Iosif Stalin, FDR priorizou a estabilidade sobre a democracia.
Aqui podemos falar das cicatrizes do poder: a ética na encruzilhada. A grandeza de FDR não apaga suas contradições. Em 1942, assinou a ordem que internou 120.000 nipo-americanos em campos de concentração. “É uma medida de segurança”, argumentou, enquanto seus próprios conselheiros sussurravam que era paranoia racial. Também não levantou um dedo para salvar os judeus do Holocausto: recusou-se a bombardear Auschwitz e manteve as cotas migratórias rigorosas. “Vencer a guerra é a prioridade”, repetia, embora o custo fosse a cumplicidade moral.
O Legado: A Arquitetura de um Novo Mundo:
FDR morreu em 12 de abril de 1945, semanas antes da rendição nazista. No entanto, sua visão institucional e sua realpolitik idealista moldaram boa parte do resto do século XX:
- A transição hegemônica: os EUA substituíram a Grã-Bretanha como potência global.
- Uma decadência muito forte do Império Britânico pós-Segunda Guerra, sobrecarregado pelo esforço bélico, as dívidas e uma mudança de época que parecia inevitável.
- Dualidade da Guerra Fria: suas alianças com a URSS semearam tensões, mas seu quadro institucional conteve o conflito durante anos.
- O sonho da interdependência: as Nações Unidas, embora uma organização imperfeita, continuam sendo o fórum global que ele imaginou.
O Estrategista do Possível:
FDR governou na era do possível, não do perfeito. Seu gênio foi negociar entre ideais e realidades, entre o isolacionismo de seu povo e as demandas de um mundo em chamas. Como disse em seu quarto discurso inaugural: “Aprendemos que não podemos viver sozinhos, em paz; que nosso próprio bem-estar depende do bem-estar de outras nações”. Em um século XXI fragmentado, seu legado lembra que a diplomacia não é a arte do perfeito, mas do necessário. FDR navegou entre sombras e luz, entre o idealismo wilsoniano e o realismo de Kissinger. Sua maior lição: em um mundo imperfeito, o negociador deve ser tão flexível quanto firme, tão visionário quanto terreno.
Quando FDR morreu em 12 de abril de 1945, semanas antes da queda de Berlim, ele deixou um planeta fracturado, mas esperançoso. Suas instituições — a ONU, o FMI, o Banco Mundial — continuam sendo pilares vacilantes de uma ordem que ele imaginou. Sua aliança com Stalin semeou a Guerra Fria, mas sua fé na diplomacia multilateral evitou uma Terceira Guerra Mundial.
FDR não foi um santo nem um cínico: foi um homem que governou no cinza, negociando com monstros para salvar o que ele acreditava ser salvável. Em um século XXI onde o isolacionismo ressurge e as instituições vacilam, seu legado é um lembrete: a diplomacia não é a arte do perfeito, mas do possível. E, às vezes, o possível é o suficiente.
A influência da doença em sua Diplomacia:
A poliomielite de Franklin Delano Roosevelt (1921) e seu deterioramento cardíaco em 1944 influenciaram sua tomada de decisões. Podemos mencionar alguns casos emblemáticos:
Yalta (em 1945): sua fragilidade física o impediu de resistir ao impulso de Stalin e suas ambições sobre a Polônia, facilitando a sovietização da Europa Oriental. Nessa Conferência, já a força do terceiro ator, Winston Churchill, carecia de força para impor muitas condições.
Uso de intermediários: confiou em Harry Hopkins e Eleanor Roosevelt para missões sensíveis, como negociar com Churchill e líderes soviéticos. Não obstante o esforço realizado pelos intermediários, eles não representavam o mesmo que Roosevelt, mas sua fraqueza física tornava impossível que, além disso, tivesse a energia de antes.
O desenvolvimento das chamadas Operações Secretas:
A importância do denominado “Projeto Manhattan”: FDR autorizou a bomba atômica sem consultar o Congresso, negociando seu desenvolvimento em segredo com Churchill (no Acordo de Quebec, 1943).
O desenvolvimento da OSS (pré-CIA): criou o Escritório de Serviços Estratégicos em 1942, usando espionagem para influenciar governos exilados e movimentos de resistência.
FDR e a América Latina: entre a política do Bom Vizinho e a concepção do
Pátio Traseiro:
Enquanto promovia a não intervenção, FDR tolerou ditaduras como a de Anastasio Somoza na Nicarágua em troca de apoio contra o Eixo. Sua política foi menos idealista que pragmática: buscando garantir recursos e bases militares.
Na América Latina, onde seus predecessores haviam enviado fuzileiros navais, FDR enviou respeito. A Política do Bom Vizinho não foi um ato de caridade, mas de inteligência fria: retirou tropas do Haiti e da Nicarágua, aboliu a humilhante Emenda Platt em Cuba e converteu ditadores como Somoza em aliados discretos. “É melhor ter amigos do que colônias”, parecia sussurrar, enquanto as exportações americanas fluíam para mercados antes fechados.
Em sua obsessão pela estabilidade, abraçou ditadores. Desde Trujillo na República Dominicana até Batista em Cuba, preferiu tiranos previsíveis a democracias caóticas. “Não são anjos”, admitiu, “mas são nossos demônios”.
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